quinta-feira, março 27, 2008

Platz

Expresso do Oriente

Hoje pus-me debaixo do chuveiro e da sua água escorrida com a torneira rodada sensivelmente a meio, na quantidade e na temperatura. Desliguei os olhos dormidos e silenciei-me para ouvir o fim dos ruídos urbanos. Pausas. Sinto-me numa pausa atenta. Atenta sim. Presumo que me estejas a tentar perceber, bem...e eu a tentar explicar-me. Não obtenho respostas fáceis e deduzo que não sejas crítica a este ponto. Tu saberás na altura certa o porquê de ter saído de casa numa pressa controlada há uns meses atrás. Saberás e perceberás que a distância que irei percorrer vai decidir a minha pequena parcela de felicidade que pretendo concretizar, tê-la, nas mãos, no corpo, por todo o lado. Quero ter esta viagem em fotografias, em reportagem; quero tê-la simplesmente.
Já perdi o interesse dos recortes de jornais e dos documentos e fascículos geográficos, farto de coleccionar sonhos e desejos, preciso de uma cesta/mala que me leve tudo que necessitarei, preciso dos documentos e de algum dinheiro. Julgo que só, Não creio que se trate de uma crise negativa, se é que as crises também poderão ser positivas, não, acho mesmo que é o princípio do nirvana. Um nirvana puro e possível no meu mundo que tu também já beliscaste. bem, no fundo é apenas a agitação de uma viagem há muito pensada e prometida, uma carruagem de viagens que um dia será mítica, isso sim, sem dúvida. Parto hoje de Madrid com destino a Paris para iniciar a aventura, ouvi na telefonia uma ocupação de tropas alemãs, os jornais de hoje não falam de outra coisa, parece que a guerra chegou à Polónia, ainda assim, farei a minha aventura sem mais demoras. Estou hospedado num Hotel que fora um antigo convento precedido de um quartel da Grande Guerra. As notícias que aqui chegam não são animadoras, a BlitzKrieg Alemã parece ter furado um país sem oposição num ápice, quem sabe onde eles param agora? Apesar de tudo não estão a assustar-me e peço-lhe que tenha confiança, espero que se mantenha atenta pois nem Paris nem Londres estão a salvo. Por esta altura já estarei em Viena, possivelmente a beber um chá a ferver como eu prefiro na esplanada virada para uma praça repleta de Música. Deixo-lhe com esta carta um bilhete para vir ter comigo e concluir este sonho. Não sei, talvez acabá-lo com a mulher que amo não fosse assim um devaneio tão grande. Não sei se ainda se encontra no velho hospital em Paris, desde que me deu aquele bilhete pequenino com a sua morada que penso neste convite a par com a viagem. Assumo a probabilidade de não vir ter comigo, percebo que mesmo esta carta poderá não chegar às suas mãos a tempo, poderá mesmo nunca chegar. Sei também que poderá mesmo não querer vir sequer, espero que não se canse das minhas pequenas aventuras, distanciamentos. Há também o princípio de uma guerra aberta com Inglaterra e França, e talvez não seja seguro que viesse ter comigo, sinto-me dividido. Não saberemos se será possível também... Ainda assim, re-escrevo, percebo que não tenha disponibilidade e por isso não elevei demasiado as minhas expectativas, apenas sorriria se a visse chegar no 14 de Setembro à renovada estação de Constantinopla. Seria esse fim de sonho...o começo de outros.
Trago um velho bloco de notas sobre esta viagem, demasiado riscado e profusamente carregado de mapas e conselhos, histórias e amigos, velhas fotografias antigas a separar folhas já muito amarelas e soltas. Apesar de ser ainda do velho percurso algumas das paragens ainda se fazem, espero que me ajude, as referências são enormes e passei horas diante a ouvir o meu pai a dissertar a beleza e a importância desta viagem na sua vida, uma viagem que o meu pai me deixou...
Peço-lhe ainda que venha de azul turquesa...ficará deslumbrante por certo!

Talvez hoje esteja com um bilhete que lhe deixei a ser rasgado na Gare du Nord...
Talvez...

Madrid, 2 de Setembro de 1939