terça-feira, dezembro 13, 2005

Desenhos desanimados?

É com alguma tristeza que olho para os canais de televisão em horas de acordar e deparo-me com desenhos demasiado animados para o meu gosto.
Sempre achei quando era criança (não achamos todos?) que quando ouvia os meus pais a dizer :"ah nós também já passámos pela vossa idade...", era uma grande falsidade, que jamais poderia ser assim, senão eles compreenderiam-me perfeitamente; mas não, não era o caso.
Então, pensava eu, que bastava decorar todos os gostos de criança, os jogos , as preferências, as manias, os ídolos, etc... e que se conseguisse transportar isso para a minha vida adulta, quando crescesse, lá estaria eu, agora sim, finalmente apto para ombrear com a mais difícil das crianças.
Mais que debater era ser uma delas, utilizar exactamente o cérebro como dantes, como nesse dia tinha imaginado que tudo mais tarde se iria passar!
A tentativa era bastante absurda, mas na altura parecia-me muito simples e concreto.Tudo muito consistente portanto.Não fora eu um ligeiro mago das teorias absurdas e jamais me teria aventurado em algo tão inusitado e estranho. E claro, dizer algo a alguém estava fora de questão, ninguém teria percebido, e pior, talvez não tivesse conseguido levar a cabo esta demanda. Teriam achado um delírio... Miseráveis bebedores de presente! Era com eles , exactamente eles, as outras crianças com quem eu nunca poderia contar, nunca conseguiriam levar a cabo uma missão tão arriscada, nem tão pouco poderia tal coisa entrar assim onde os segundos contam e passam em modo corrida. Era no mínimo ridículo pensar além de mim. Egoísta? que fosse. Estava imparável. Plenamente confiante na minha sabedoria. Sapiente portanto. Achava-me mais inteligente que os meus pais, pois agora eu era capaz de projectar-me no futuro e corrigir os erros dos mais velhos em relação ás crianças. Conseguia-me colocar onde quer que fosse. Em visão meramente abstracta. Mas via. Era portanto uma aventura temporal bastante longa. Uma prova de resistência absoluta! Sentia-me capaz e isso era o mais importante, melhor: era tudo! De imaginações fáceis e decididas embarquei então nesta epopeia que atravassava, imaginava eu, o meu não crescimento. Ou então eu era capaz de decifrar em todos os momentos os códigos das crianças, digamos, estudar compulsivamente tudo o que aprendera para depois poder reutilizar a meu favor, como eu pretendia, e logo já não teria de me privar do meu crescimento intelectual normal e comum a todas as crianças (e depois jovens até se tornarem adultos) que me retirasse a limpidez necessária, um filtro de brincadeiras, uma enigma mas sem guerra que me permitisse saber exactamente o que era ser criança em situações de adulto.O que hoje era tão simples, eu era exactamente aquele menino de cabelo castanho sempre enorme com roupa a condizer com a da minha irmã, de chuxa dividida entre o olho e a boca, e depois, no chão, no amanhã distante já do mundo dos crescidos lá estaria eu , grande, mas assim, pequeno,o mesmo cabelo desarticulado, mal penteado, com os mesmos olhos, a mesma expressão, as brincadeiras sem tirar nem pôr, por aquilo era tudo, eu tinha tudo. Porquê mudar? perguntava eu. Neste sufoco precoce apercebi-me que sonhar e voar baixinho, saber levar-me, encostar-me ao vento e saborear, era tudo. Não queria ser o chato, fora de tempo, o que os meus pais eram em duplicado. Não precisava disso. Talvez tivesse parado o relógio se tivessem deixado. Se mo permitissem, se essa paragem universal pudesse mesmo existir.Para agora me sentir apartado? Enleado em mentiras de veneno lento, muito lento? Não! Não queria. Era tudo muito objectivo e claro na minha pequena massa cefálica. Algo teria de mudar, antes mesmo de ter vivido o que imaginava. Premonição longínqua. Era agora ou então nunca mais saberia o que era ser criança. Estabeleci um plano mental rápido mas incisivo. Como sempre o tinha feito.
Delineados os parâmetros básicos bastante regrados e sistematizados e depois de algum desenho futurístico lá fui eu, onde o tempo me recebesse mais tarde.
Ao longo dos tempos contados segui escrupulosamente a minha tarefa heróica. passo a passo. Sem deixar rasto para os mais velhos, para os mais novos, eu estava a conseguir.
a minha ideia basilar encontrava-se ainda de pé passado uma década e meia. Tudo parecia encarrilado. Tudo valeu para me conseguir suster. Mais que uma teoria, eu precisava de um teorema, e nem precisava de demostrá-lo, para mim, chegava-me a serenidade de ter alcançado o que me tinha proposto. Não precisava de mais teatros, ía em breve deitar por terra todas as psicoterapias infantis e todos os escritores derivados de Sampaio que me fazem confusão. Mal sabia eu no que me estava meter. Estava a tirar um Mestrado sem querer. Mestrado em vida humana, julgava eu.
Nos dias que me fui sentando mais vezes. Nos dias mais contados. Olhei adiante e não me vi.
-Não! não posso crer! berrava. Estava espavorido. Um susto desacalmou-me a tensão e olhei de novo. Novamente desperto, apercebi-me que fixava a televisão, num desses dias que deixaram de ser noite, onde o meu filho adormecera ao meu colo no sofá vermelho da sala pousado docemente sob um livro escrito por ti, e via de manhã já acordado e aquecendo-me os pés dum inverno embriagado a televisão que não queria que ele visse. Que eu lutei por não ver. Onde estavam os desenhos, as brincadeiras que eu via? que criava, os legos que montava horas após horas para depois desmontá-los com a rapidez de um dia seguinte de escola. Onde? onde estão as crianças a partilhar a rua, a jogar à bola; as meninas a jogar à macaca, à cabra cega. Os desenhos animados que me percorriam e me alimentavam, como é possível algum dia estas crianças serem felizes se nunca viram isto, nada disto!? Como é que poderão eles ser crianças assim desta forma? tão desprotegidas dos pais, à mercê de um meio extremamente embrutecido mas qualificado para alterar os comportamentos de pequenos seres humanos? Anúncios em catadupa inundam-lhes os cérebros diariamente e como se não bastasse, estes grandes devoradores de criançinhas levam a lição bem estudada à noite para os encarregados da não educação menos avisados e precavidos, enquanto os pequenos, esses, dormem!
Hoje perdi a minha aposta mental. A viagem terminou, já não sei mais nada. O que dantes era tudo agora perdeu-se. A realidade alterára-se para sempre. A minha conquista é que descobri que a verdade é uma coisa geracional. Como a infância e as brincadeiras. Têm um tempo exacto. Resta-me lembrar como era dantes...Resta-me sê-lo sem que ninguém mais queira saber ou lembrar. Já passou...

5 comentários:

Mary Mary disse...

Cabe-nos a nós mostrar o que era esse mundo maravilhoso que vivíamos. Que ficávamos com a boca preta por comer pinhões... Fiquei com saudades da minha infância e das brincadeiras que fazia. Hoje em dia não há nada disso... Felizmente os meus manos pequeninos não vivem em Lisboa, gostam do Noddy e do Bob, o construtor e devoram filmes da Disney em pescadinha. E como vivem no campo, andam descalços na terra, os narizes entupidos, roupas rotas... Talvez nem tudo esteja perdido... :)

joaopedromira disse...

sim, talvez nem tudo esteja perdido. Lembrar é bom.

Mary Mary disse...

E nada como ser miudo novamente e fazer castelos na areia! :D

Agora já conheces as minhas cicatrizes de cair da bicicleta! Ahahahahah!

joaopedromira disse...

Adoro castelinhos...os que fizémos eram tão giros...

joaopedromira disse...

porque é que ele ruiu?