quinta-feira, novembro 01, 2007

O menino amarrotado

Era uma vez a história de um menino muito reservado. Ele era calado mas nunca deixou de se pronunciar sobre os assuntos mais diversos, gostava bastante de jogos antigos e adorava observar o mundo,- "um olhar perdido"- diziam. Era apenas um olhar interessante e cativava amigos pelos cantos de toda a sua cidade, na sua velha escola; era um amigo de pequenas aventuras. Pequenas porque era esse o seu tamanho.
Esse menino não era apenas bonito, mas, por isso, enchia o desejo de todos os outros da nova escola, ele era calado e nunca se apercebera que aos poucos começavam a fazer pouco dele, pelas suas brincadeiras aparentemente absurdas e antigas; a novidade já não existia e repentinamente tornou-se desinteressante aos olhos de todos. Não queria ser notado, apenas... não esquecido! Ele às tantas denunciava um olhar amargurado e a sua tristeza enaltecia a sua sombra, havia dias que arrastava a sua mochila da escola e já nem ouvia o que os outros diziam: eram os outros, os parvos, os idiotas que apenas não brincavam as suas brincadeiras. Sentiu-se deslocado, perdido. No princípio as coisas eram uma coisa, depois, com o tempo, foram ficando muito adversas. Era um rapaz incompleto, ou melhor, era um rapaz diferente mas ninguém viu isso a tempo, já ninguém queria brincar com ele entretanto. Queriam os meninos-novidade. Às tantas houve uma menina que até lhe achava piada que lhe disse que brincava com ele porque achava que era "fixe" estar com ele...mas logo deixou de estar porque mais ninguém o fazia, lá está, esteve porque era recente e oportuno, porque parecia um escape aos antigos com quem tinha andado, porque parecia giro, mas era só isso, epidérmico quanto baste; ninguém lhe deu tempo para falar e aquela sua cara de menino bonito não mostrava mesmo a ninguém quem era. Os sorrisos apareciam-lhe escondidos, sorrir era a última coisa que lhe apetecia, o trajecto até casa era já feito sozinho; só, sempre só... Odiava aquela escola mas não tinha feito nada por isso, a novidade tornou-se numa tortura para ele, já não o era! Ele não percebia porquê a afinidade inicial e depois de ser novidade foi encaixotado como um velho brinquedo sem uso. Como um velho e lindo boneco de pano sem mais brincadeiras para oferecer. Porque é que se desiste assim? Porque é que se encosta uma pessoa desta forma tão seca, tão egoísta?
Porquê quando os "brinquedos antigos" são os melhores, têm histórias fantásticas para serem contadas, têm um legado familiar por vezes, têm sabedoria...tal e qual como lhe tinham ensinado? Mas estes meninos não davam valor a isso e mal deixou de ser um aluno recém-entrado foi esquecido e relativizado, as suas opiniões fantásticas valiam de tão pouco mal abrisse a boca, os seus brinquedos que eram bons no começo agora não prestavam para nada; ele, abismado, que a olhar para isto, para os seus brinquedos e para si, reparou que não podia ser amarrotado nem deixado como um brinquedo partido, não queria ser um menino bonito apenas, não tinha culpa de sê-lo, não queria nem por mais segundo que fosse. Queria ser mais, mas quem é que lhe prestava atenção? Todos os dias havia uma novidade e todos as outras crianças abraçavam-se a elas e esqueciam o rapaz ou o que quer que fosse que ali estivesse; esperava se fosse preciso por uma oportunidade, como se fosse ele a quem tivesse que ser dada uma; como se fosse ele o resto, a sobra. Sentindo-se um trapo, a sua confiança descarrilou em ruas inclinadas e também por elas percebeu que as pessoas valem mais. Foi numa rua inclinada que viu o seu rumo e por onde não queria seguir, queria ser um contador de histórias mas tudo o que tinha sido era pouco. Descobriu que existia ali só para ser mostrado, aos outros, -"vejam vejam como ele é bonito e pouco mais". Imagino o que não será descobrir que és parte de uma trama para satisfação de alguém, com um carácter quase meramente objectual. Que ascendes de situações mal-resolvidas e és aquilo que as pessoas querem que tu sejas, só para servir, para ser visto com..., ser mostrado como um troféu, uma nova conquista pronta para ser posta na montra dos amigos e da família. Imagina que foste escolhido por aparentares e para ser um descargo de consciência, uma substituição na hora certa: -" É mesmo "este" que queremos para mostrar no nosso círculo de amigos".
Imagina que tudo não terá passado de um grande mentira e só descobres quando te afeiçoaste demasiado. Imagina que te controlam por te terem tornado previsível e comum e agora podem se ver livres de ti, plenos de moralidade e falsa-compaixão. Imagina que acreditavas no primeiro olhar e te dizem que ele nunca existiu. Imagina que te puxam a vida por debaixo dos pés e tu queres desistir. Imagina que não representas aquilo que sempre te disseram e já não sabes em que parte acreditar. Imagina que nem por um um segundo gostaram de ti, apesar das aparências.Viram nele um campo de possibilidades e em nenhuma altura tinha sido pelo seu coração as suas opiniões e intenções. Ele não era um pedaço de aconchego dos desejos momentâneos dos outros, para depois já não servir, não queria ser essa coisa pálida e egoísta. O miúdo foi faltando à escola, começou a desinteressar-se de igual maneira, deixou de se preocupar porque a vida para ele atingia um limite: a sua auto-estima, o seu ser e a sua personalidade. Sentindo-se um trapo de menino decidiu abandonar as amizades, as paixões, as ilusões que lhe restavam. O que se pensa quando se está a mais? O que se faz? Agarrou-se aos seus velhos bonecos de pano, abraçou-os como antigamente e parou de chorar, fartou-se de já não prestar, de já não ser útil, de já não ser Ele. Afastou-se para sempre da superficialidade das relações e mais tarde conheceu a rapariga com quem viria a viver. Para sempre.

2 comentários:

Kokas disse...

A mim não me convences que não há aqui projecção. Temos que falar melhor sobre esta história. Sim, amigo, não me enganas! Para mim esta projecção não é evidente, mas sente-se. EU sinto!

Aquele abraço

joaopedromira disse...

Estás sempre junto à verdade.
impressiona.