sábado, agosto 30, 2008

Passado Lembrado

Resolvidos os passados peçonhentos, demito-me na retenção de memórias. Hoje dobrei o lençol da minha cama como nunca o tinha feito. Fi-lo ainda assim como alguma estranheza, a falta desse hábito era mais que evidente; levantei-me distintamente e ao debruçar-me percebi que tinhas ficado. Fitavas-me com olhares perigosos enquanto o debrum do lençol desenhava o teu corpo incansável. Permaneceste porque só eu achei que não tinhas lugar naquela casa arrendada, meio perdida por entre paredes sub-urbanas. Era um casco cheio de falhas amparadas pela vontade do pouco dinheiro que abundava na minha carteira. Senti-lhe o fundo. Lembrei-me que já nem carteira tenho visto que a penhorei naquela ruela por detrás do antigo bairro onde morei. Ela percebe que eu temo que um dia vá embora, como todas as outras fizeram, porque eu sempre quis. Eu temo que ela um dia não apareça; medo de um dia querer. Quero antecipar-lhe a decisão. Talvez não me marterize tanto, penso eu. O facto é que a encontro nas esquinas, nas dobras da casa, encruzilhadas, pelas fotografias preto e branco , pelo seu odor a cores, sem perfume, na roupa espalhada pelo chão que se solta em tábuas. Percorres as poucas divisões; entalada por corredores exíguos e tortuosos. A casa és tu.
Hoje coleccionei mais uma aproximação do que és para mim. Dás-me coragem; no entanto, distancio-me. Detive-me diante do café central e ousei entrar, sentar-me e sonhar uma vida.
Hoje até comprei o jornal do dia, pedi o melhor pão e o café afinal era tão ou mais delicioso do que era falado por aí. Olhar aquele grão bruto e castanho que enfeitava a frente da prateleira superior era um luxo. "Cafés do mundo", dizia. O central era uma sala esplendorosa no centro da cidade onde poucos entravam, nem percebi que era olhado de lado e com desprezo, apenas entrei. Não cheguei a diferenciar-me. Ninguém naquele dia poria-me fora dali. Eu podia ser pobre, podia até estar longe da aparência necessária mas, ali, eu fui sublime. Por momentos quis acreditar que era um frequentador assíduo, não só não o era, como seria o último em que entrava assim com tanta destreza.
Isto porque quero ver-me livre das memórias que me angustiam, estes carimbos de vida que me percorrem a visão por dentro e que eu não preciso. A devassidão que impregna a minha vida prometia acabar. O meu corpo desistirá à próxima tentativa de libertinagem. A dor física sobrepõe-se à outra, sem pena. Não posso submeter-me a tal vexame. Ela que dirá?
Diluído a um rabisco de exemplo, por não ter dado a mínima luta a esta sociedade destrutiva, resolvi deixá-las sob
um vermelho intenso e distorcido da estação de combóios a oriente, na fila dos não lembrados. Parto sem bela nem casco. Vou, mais uma vez, por dentro de memórias vastas.
E eu a tentar rasurá-las por fora.

Escrito e publicado por mim no dia 29 de maio de 2006

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