domingo, junho 12, 2005

cidade sem tempo...

Entrei pela primeira vez em muitos anos.Vi-me aflito na aproximação, uma angústia tremenda de revisitar um sitio, o da rua dos miudos a brincar, aquele que disse: até já. Num adeus sumido, distante, engolido pelos anos passados; um adeus mantido, um adeus mentido.
Mas o sonho começou no partir, o de fugir, a aventura de ser eu só em busca de mim, de novo.
O que a guerra trouxe foi esta separação inevitável, a interminável. As cartas perdidas em tempos exactos, não foram lidas. Eu deixei de existir para ti, para a minha família, para mim. Fui embora para não voltar. Fui-me.
Entrei em casa a pensar nos dias passados.
O meu sorriso trouxe.me de volta, lá aquele sítio.
de repente senti que tinha voltado. A diferença era absoluta.
O cheiro tresandava a memória.
Despi o casaco grosso que trazia, pendurei-o no cabide junto à porta e que ainda estava lá, descalçei os meus sapatos italianos, olhei-me ao espelho
e percebi que estava triste. Era eu, ali, presente desfocado pelo tempo, pelo passado quase esquecido.
O soar do sino da igreja ainda era aquele.Mas pouco restava. Aquela verdade havia mudado, para sempre.E eu, nada podia fazer. Apenas imaginar...
A janela estava entreaberta que deixava passar o som invulgar,esse, sim, recuperei-o; o vento que vinha do mar, a brisa que me acompanhára na minha juventude; as tristezas as paixões, os amores, lembro-me da Luísa como se fosse hoje. A sua pele macia que me fazia sonhar os seus sonhos que nos agarravam, os meus que nos afastavam. Lembro-me de tocar à sua janela para que os seus pais não me ouvissem chegar. Lembro-me dos livros emprestados, das cartas trocadas, dos beijos imaginados, os consumados, daqueles que ficaram por dar, os da despedida inevitável. Tudo começava a juntar-se, uma peça após a outra, um puzzle incompleto, tudo numa forma estranha; o ambiente mudára! Já não havia nenhuma luísa ou uma outra qualquer paixão passada. As pessoas já não me conhecem, já não me cumprimentam ou dizem bom dia. passam umas pelas outras, anónimas, indiferentes, mentes indigentes. Os rostos envelhecidos olham para baixo.Para si mesmos. A cidade parece mais distante entre ela, no seu limite físico e no outro; entre os próprios, quanto mais comigo. Inóspitos, frios para quem os visita e trás as boas novas que agora chegam por vozes sem som na velocidade do cabo óptico. A verdade do bairro sumira. Aquele cidade transformara-se, era agora um ambiente seco e de certa maneira hostil. Mas a minha casa era estranhamente aquela, a da porta azul, que ficava na esquina do correio com a velha igreja como pano de fundo. E essa realidade não existe mais. Só um esforço imenso devolve o meu fiel esquisso mental. Um skyline outrora perfeito era agora esventrado no seu desenho delicado por homicidas sem nome que construíram ao longo dos tempos na mais vil compactação da casa vertical. Esquerdos direitos sem rua, sem vizinhos e sem alma.
Pisar aquela terra de novo foi sentir o vazio imenso da partida, um miolo perdido do que era meu. Possuía-o. Possuí aquela cidade, as árvores, a calçada o jardim, o à beira mar, mas agora não, não é de ninguém, não querem saber... Os cheiros mudaram a pouco e pouco, no lugar da velha fábrica é agora um silo automóvel. A cidade está infestada desta diabólica máquina. Esquecemo-nos que estamos a cometer um dos maiores homicídios de todos os tempos. Ninguém vê isso, todos viram o Holocausto, o cerco a Estalingrado, Nagazaki e Hiroshima, passaram por isto, mas ninguem vê esta loucura.E Kyoto? Somos cúmplices e um dia seremos punidos. A minha terra mãe dilacerada queimou-me por dentro.
Cansado, sentei-me na minha cama antiga de corpo e meio e adormeci num sono de profundo desgosto até ao dia seguinte.

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