segunda-feira, setembro 19, 2005

Fotografar paixão

No outro dia decidi-me
saí à rua apenas com um intuito
sem encenações procurei achá-la ao meu redor
mas que redor?
que limite?
sim, era a paixão
Para isso defini o perímetro
trouxe comigo a velha Yashica que comprei num mercado em Luanda
O seu corpo já denuncia as minhas viagens
Riscos, marcas de guerra. Histórias sem guerra.
A lente relata com a mesma exactidão de sempre
não envelheceram como os meus olhos
não envelhecem sequer
Trouxe nos bolsos os meus velhos rolos Ilford que me compreendem
A velha vizinha do rés-do-chão olhou-me pela janela por detrás da curtina, como sempre.
Já não faço caso. Mas não a consigo ignorar.
A lente de 50mm faz-me avançar de encontro com a verdade
O tacto da máquina continua o mesmo. O seu peso excessivo e o seu difícil manuseamento continuam-me a surpreender.
Distanciei-me do meu estúdio.
Prelúdio.
Decidi apanhar o comboio. Saí na estação que pretendia. Sem enganos, dirigi-me à estação de metro.
Percorri os longos túneis de acesso, desci as escadas devagar sempre à direita e entrei na carruagem.
Enquanto pensava senti os pingos de um chapéu de chuva levantado no antebraço
que frio.
A mulher nem pediu desculpa.
Que surpresa...
Já à superfície senti que a minha foto teria de ser o frio daquele fotograma que iria captar
que queria ter.
Tê-lo só para mim.
Só o frio alterará as circunstâncias no micro-segundo em que dispararei.
Ver a paixão para de repente modificá-la como a gota fria da chuva que seria, por proximidade, uma lente fixa de um ladrão de momentos; eu.
Sem possibilidade de me aproximar por meio de sequências de espelhos convexos que constituem um zoom teria de ser o meu corpo a fazê-lo. Suavemente na rapidez de um possível momento. E então provocar. Provocar-te. sim, sem querer fui para perto do pátio que costumas estar, ler o teu livro, passear. Sim, já sabia para onde ía quando saí de casa.
Não pude contrariar-me, a mim, ao meu movimento mecanizado. Condenei-me à partida. Como pude eu pensar que conseguiria fotografar tal tema sem fotografar-te? Será que algum dia seremos totalmente imparciais? Onde toca a loucura nisto tudo? Estarei louco?
Jamais poderia trair-me na promessa que fiz de não te ver. Esquecer-te. Pôr-te de lado.
Secundarizar-te , devolver-te a um plano anterior onde o tempo já não corre. Não passa.
Onde não te visse . Onde o grão fino da tua voz não estremecesse os contornos da minha vontade. Mas a tua voz...
se ao menos pudesse esquecê-la. Retirá-la pela raiz. Para tonar-se indiferente. Para tornar-me diferente.
talvez para viver sem negativos de que existes.
remeter as recordações nesse plano que já não chegam todos os dias como dantes.
dia-a-dia.
um esforço cerebral.
extenuante.
mas aí,
já estarei a lembrá-la...

4 comentários:

Mary Mary disse...

Este texto é lindissimo. Já o li duas ou três vezes e nunca sabia o que comentar... E mesmo agora não sei! Está de facto muito bonito! É a única coisa que me sai mas não queria deixar de dizer alguma coisa...

joaopedromira disse...

muito obrigado! sério.és a primeira pessoa a dizê-lo.
eu tenho a panca da poesia que tem por base Rilke. A Poesia Futurista digamos assim.Só não gosto das variações anagramáticas.Bahg ,geralmente têm pouco interesse.
é por isso que venero a poesia experimental dos anos 60/70, é fantástica!!
Transpôr isso, essa cultura gramatical, para um poesia/prosa parece ser mais interessante para mim.Gosto de experimentar. Talvez um dia passe para prosa/poesia e acabe finalmente em prosa.
é tão só a diferença dos 100 metros "sprint" para uma maratona...Depois ou tens muita imaginação ou uma vida sofrida..."and i´m not near by any of those two"

joaopedromira disse...

tento escrever em "passo" muito lento para depois acelerar.
deve ser um mecanismo subliminar das minhas eternas paixões literárias.tvz seja isso
não provoco mas acaba sempre por acontecer.

Mary Mary disse...

Sou eu que tenho muita imaginação ou vida sofrida?
Se não é para mim posso à mesma responder... Um pouco de ambas...