domingo, setembro 14, 2008

O menino afegão que soube continuar pequenino



















De tempos em tempos avistava um menino de trajes coloridos e simples esbatidos pela poeira levantada pela Guerra, tinha um andar seguro apesar das finas pernas que o sustentavam, nos pés levava uns sapatos gastos, três tamanhos acima, eram sapatos de couro já sem brilho, forrados a pó e terra, por dentro e por fora, achava eu, tal como o seu pequeno coração.
Aqui aprende-se a fugir das minas terrestres como quem brinca à macaca, nós privilegiados, temos carros com pés de aço, já quase não ouvimos os rebentamentos, já não os distinguimos da realidade. Mas este menino-rapaz tinha qualquer coisa especial, todos os dias levantava-se à mesma hora, ía ao mercado com o pouco dinheiro que sobrava, e , sobretudo, quando não havia, levava uma saca de nozes para trocar por alimentos. Todos os dia o via na minha ronda e passava sempre de sorriso desenhado no rosto brincalhão, a saltar por entre pedras esmagadas, nos trilhos dos nossos pés de aço, como eu fazia quando tinha aquela idade e caminhava para a escola, por jardins, pátios, escadas, pelos nós do passeio, pelas pedras calcárias do lancil , mas sem tocar nas frestas que as juntavam, como se de um jogo se tratasse, se tocasse nas frestas "perdia"! Aqui pisar o risco era diário e o medo já nos fazia companhia, mas, ainda assim, este miúdo, com um mundo de verdade à sua volta desta dimensão, onde havia casas de adobe sem famílias, já sem os seus amigos, mesmo assim, o rapaz Pashtun caminhava pelo seu passo alegre e desconcertante sempre com um sorriso de menino que nem mais esta guerra soube tirar.
No dia que me vim embora, procurei o rapaz e trazia comigo uma caixinha de música antiga, de tons azulados, que a minha namorada me tinha oferecido, tocava Mozart e todos os dias adormecia a ouvi-la, mas hoje, de manhã cedo, àquela hora, o menino não passou mais.

2 comentários:

Anónimo disse...

Nada se perde para sempre. Há sempre a memória!

Abraço

joaopedromira disse...

sim...fica sempre a memória. mas aqui nesta história o menino, por qualquer motivo não apareceu, e o rapaz não conseguiu deixar-lhe a caixa de música. Essa memória ele não tem, apenas a memória de que a história daquela rapaz pode ter ficado incompleta...ou não. A incerteza é trágica. lol Gosto de tragédias, é um facto. :p um abraço, mesmo não sabendo quem és.