quinta-feira, novembro 02, 2006

A rapariga das riscas

Havia uma loja de canto que passava despercebida a tantos miúdos menos aquela rapariga maria-rapaz que tinha sempre umas meias muito riscadas e coloridas.
Certo dia lá ganhou coragem para entrar e viu a loja mais encantadora até hoje.
Carregada de pó e de memórias vastas a menina de pernas altas e riscadas, franja preta inclinada sobre os olhos, subiu por entre o amontoado de caixas empilhadas até atingir o topo daquela montanha. Chegara ao tecto destemidamente e as caixas não demonstraram sinal de alarme; não estremeceram um mícron sequer! Foi então que do alto daquele amontoado se apercebeu que o chão se encontrava muito mas muito lá ao longe. O medo e os tremores apoderaram-se das suas pernitas listadas cheias de cor e por pouco não se assistiu a um grande trambulhão. Lá se agarrou fervorosamente a um pedaço de madeira que surgia misteriosamente do tecto, por entre bocados de estante e livros amassados. O ruído acentuou-se até quebrar e aquela pequena peça mexeu-se soltando um livro dourado que levemente dançou numa descida abismal sem tocar em nada. Miraculosamente em nada! A menina lá garantiu o equilíbrio e aventurou-se numa descida acelerada e perigosa na ânsia de bisbilhotar o volume ímpar que caíra lá do cimo da pilha de caixotes. A vontade assombrou o medo e fê-lo desaparecer nos 10 segundos de "Rappel" por ali abaixo.
Zás Zás Zás e cá estava ela novamente; pronta para ver o conteúdo do pequeno livro dourado.
O livro vinha bem trancado e mesmo assim a sua teimosia era mais forte; com alguma perspicácia e desenvoltura lá se desembaraçou do trinco e abriu o livro mágico que sobrevivera ao impacto! A primeira vez que olhou para ele não percebera bem o que era. Até olhar uma e outra vez, apercebendo-se que se via mais velha, e de seguida mais nova. Como se a vida lhe corresse pelos olhos. Viu tristeza, viu passado. Mas o livro era uma coisa boa e logo logo se percebeu que aquela rapariga de pernas longas e esguias, maria-rapaz e teimosa como tudo se iria dar bem na vida que lhe seguia. Era nova mas viu cor, paixão e paz. Não se apercebera de metade, o que era de esperar, mas hoje mantêm o livro por perto e guarda-o sempre como alguém protege a vida. Apenas por uma vez abriu a pequena maravilha, este dia que estou a agora a contar, e diante dessa circunstância apoderou-se de um grande pedaço do seu futuro e logo num bazar antigo e desocupado arrastado para um canto de cidade desabitada. Um ar movia-se lentamente e soprava debaixo da porta soltanto um silvo arrepiante e sombrio. Assustada esquivou-se daquele canto e saiu porta fora a correr sem olhar para trás, como dizem as histórias que atemorizam as crianças pequenas.
Nunca mais necessitou de olhá-lo e tentar vislumbrar mais. Não precisava, sabia que a vida lhe iria sorrir. Sempre o soube, talvez não tivesse precisado de ter sentido uma imagem. Hoje já não sabe se acredita ou se teria sido um pequeno sonho como todas as crianças têm. Hoje a maria-rapaz é mulher e já esqueceu parte da imagem daquele dia, aquela publicação misteriosa que a teria acompanhado. Hoje a senhora das riscas largou a voz da vida sobre o chão aos 94 anos de idade apertando a caixa que continha a preciosidade, como quem diz: sabia exactamente onde se iria achar e logo logo como se iria perder. Seguiu o rumo que lhe foi escolhido, mesmo não querendo, que sabia e já tinha vislumbrado e nada conseguiu fazer para o alterar, mesmo pensando demasiado nele. Torturando-se por ter seguido ou não aquela escada... percurso inevitável? Mesmo esgotando as hipóteses de uma publicação dourada avariada. Mas não! Agora quer voltar para trás e não pode. Quer perceber se não o tivesse encontrado teria tido uma vida similar, ou ,se por outro lado, é tudo um disparate, uma então: ilusão...de criança.
Um sonho de listas às cores por cima do joelho abateu-se sobre aquele quarto que alberga uma senhora idosa deitada descansadamente sobre a pedra da sala de jantar.

5 comentários:

Anónimo disse...

Adorei esta história, deu para rir, para sorrir e um pouco de tristeza também!

Sempre disse que viveria até aos 90 anos, aqui está até aos 94! Boa boa!

Obrigada por esta história e por ter muito de mim! :)

joaopedromira disse...

:)

Anónimo disse...

bem...tem riscas pelo menos...:)
hihihi ( tem mais sim...)

Primavera disse...

...pronto...começou tudo de novo...

Anónimo disse...

:) sim! e isso é bom!!!